blog o quarto da maria

Ser mulher

02:29

Sempre fui de ficar chocada facilmente com as coisas, não sei bem porquê, até porque sempre vivi num ambiente realista, nunca me iludiram com um mundo perfeito que nunca existiu, muito pelo contrário, sempre me falaram de todas as problemáticas existentes mundo fora. Mas, chocam-me com facilidade, no fundo porque acredito sempre no melhor das pessoas e, por consequência, num mundo melhor.

Claramente, desde que me tornei mãe, que me choco ainda mais, choro ainda mais e penso mesmo muito acerca do futuro que darei à minha filha. O normal.

Bom, por mais situações que surjam em que eu diga "quando eu pensava que já nada mais me chocava..." há sempre mais e mais e mais, desta vez choquei-me a sério com a morte de duas turistas, que foram assassinadas no Equador. Pela morte macabra, por lamentar tanto o terrível desfecho destas duas vidas ainda tão no seu inicio, mas também e sobretudo pelos comentários estapafúrdios com que me vou deparando quando leio as notícias, e não,  não poderia deixar de falar nisto. Afinal de contas, sou mulher, tenho amigas, mãe, primas... já viajei sozinha e já viajei só com amigas, e questiono-me, em que mundo coloquei eu a Maria. Num mundo onde vou ter de lhe dizer que usar calções ou saias na rua é "estar a pedi-las"? Num mundo onde vou obriga-la sempre a ir acompanhada por um rapaz, pois "só assim está segura"? Num mundo onde vou ter de a proibir de visitar locais "suspeitos"? Num mundo onde vou ter de a prender "debaixo das minhas saias" com medo do que lhe possa acontecer, e não deixa-la viver a sua vida? Oh filha, o que fui eu fazer! Afinal de contas vivemos ainda num mundo tão cruel, tão machista e tão hipócrita! Para onde te fui trazer...

Estas duas raparigas são apontadas por terem ido viajar "sozinhas", portanto, o facto de estarem uma com a outra não interessa, interessa sim a ausência da companhia masculina, logo a culpa é delas porque não podiam, é perigoso viajar com a amiga, com a mãe, com a irmã... mulheres sozinhas, sem homens, são consideradas um alvo fácil? E "o que estavam a fazer sozinhas no Equador?", o mesmo que fariam em qualquer lado do mundo, portanto para viajarmos com outras mulheres há destinos que nos deveriam ser barrados na agência de viagens, é assim que se resolvem as coisas? E que tal pararmos para pensar, de uma vez por todas, como mudar o comportamento dos homens perante as mulheres? Deixarem de nos ver como pedaços de carne ambulantes, e começarem sim a olhar com igualdade, respeito e sobretudo cavalheirismo? Temos de começar a educar os nossos filhos rapazes com bons princípios, ensiná-los desde cedo a respeitar as outras meninas como respeitam a mãe. A olharem e a agirem com cavalheirismo e não com machismo. É urgente actuar nas zonas consideradas "perigosas", é urgente deixarmos de viver numa sociedade manipulada. A culpa aqui é dos agressores e NUNCA das raparigas que, simplesmente, viajavam uma com a outra. 

Não poderia terminar a minha indignação, sem partilhar a carta em memória destas raparigas, escrita por Guadalupe Acosta, uma estudante de Comunicação do Paraguai, que expressou a sua indignação na primeira pessoa, como se de uma das vitimas se tratasse:


"Ontem mataram-me.

Neguei-me a deixar que me tocassem e com um pau rebentaram o meu crânio. Deram-me uma facada e deixaram-me sangrar até morrer.

Como lixo, colocaram-me num saco de plástico preto, enrolada com fita adesiva, e fui largada numa praia, onde horas mais tarde me encontraram.

Mas, pior do que a morte, foi a humilhação que veio depois.

A partir do momento em que viram o meu corpo inerte, ninguém perguntou onde estava o filho da puta que acabou com os meus sonhos, as minhas esperanças, a minha vida.

Não, preferiram começar a fazer-me perguntas inúteis. A mim, podem imaginar? Uma morta, que não pode falar, que não se pode defender.

Que roupa estava a usar?

Porque é que estava sozinha?

Porque é que uma mulher quer viajar sem companhia?

Foi-se meter num bairro perigoso, estava à espera de quê?

Criticaram os meus pais, por me darem asas, por deixarem que eu fosse independente, como qualquer ser humano. Disseram-lhes que com certeza estaríamos drogadas e fomos à procura, que alguma coisa fizemos, que deviam ter-nos vigiado.

E só morta eu entendi que para o mundo eu não sou igual a um homem. Que morrer foi culpa minha, que sempre vai ser. Porque se o título dissesse “foram mortos dois jovens viajantes” as pessoas estariam dando as suas condolências e, com o seu discurso falso e hipócrita, com uma falsa moral, pediriam pena máxima para os assassinos.

Mas, como é mulher, é minimizado. Torna-se menos grave porque, claro, eu estava a pedi-las. Fazia o que eu queria, encontrei o que merecia por não ser submissa, por não querer ficar em casa, por investir o meu próprio dinheiro nos meus sonhos. Por isso e por muito mais, me condenaram.

E sofri, porque já não estou aqui. Mas tu estás. E és mulher. E tens que aguentar que continuem a esfregar-te na cara o mesmo discurso de “fazer-se respeitar”, de que a culpa é tua quando gritam e querem pegar/lamber/chupar os teus genitais na rua por usares uns calções com 40 graus de calor, de que se viajas sozinha és uma “louca” e muito provavelmente se aconteceu alguma coisa, se espezinharam os teus direitos, tu é que te puseste a jeito.

Peço-te que por mim e por todas as mulheres que foram caladas, silenciadas e que tiveram as suas vidas e os seus sonhos destruídos, levanta a voz. Vamos combater, eu ao teu lado, em espírito, e prometo que um dia seremos tantas que não haverá quantidade de sacos de plástico suficiente para nos calar.“

...

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4 comentários

  1. Concordo sem reservas. É revoltante que nascer mulher ainda seja sinónimo de levar com tanta bagagem machista e misógina. As pessoas estão a acordar, mas não suficientemente depressa. Ainda há dias publiquei no meu blog um texto sobre os brinquedos do McDonald's e fiquei cansada ao reparar que 1/3 dos comentários eram absolutamente machistas. Temos tanto para andar.

    Perdida em Combate

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  2. Eu também li sobre essa situação e fiquei imensamente chocada pela desigualdade de sexos que paira nessa historia...Como podem ser vistas como culpadas porque tomaram a decisão (tragédia das tragédias) de viajar sozinhas...
    Ha coisas que me deixam mesmo fulas e esta é uma delas...

    Beijinho*

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  3. O que mais me choca é que para uma grande parte do mundo, isto é realmente normal. A nossa privação à liberdade e respeito como seres humanos é normal.
    Por isso é que é importante falar, discutir e incutir nas pessoas que temos voz e direitos, mesmo que dia após da sejamos confrontadas com estas mortes que todas temos obrigação de sentir e querer mudar, também, por elas.

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  4. Eu tenho dois filhos, rapazes, pequeninos, inocentes. Um dia vão crescer, serem homens. Só espero que um dia eu tenha a certeza de que estou a fazer algo bom, e que o respeito que lhes ensino a ter por mim, mãe deles e mulher, seja o mesmo que tenham por todas as outras com quem se cruzarem.

    Beijinho
    www.blogasbolinhasamarelas.blogspot.pt

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